Aftersun

Nina Galdina
6 min readFeb 21, 2023

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Até pouco tempo atrás, o conceito de “festa estranha com gente esquisita” não era para mim. Da última vez, encostei na parede e, já muito bêbada no fim da noite, fechei os olhos e comecei a chorar enquanto “Under pressure” tocava em um volume ensurdecedor. Foi a primeira vez que prestei atenção na letra, o que explica as lágrimas. Uma garrafa de água mineral foi suficiente para me recuperar e essa sempre foi uma boa estratégia, garantia a volta para casa sem problemas de inconsciência. Meses depois, perdi minha mãe. Um ano depois, meu pai.

Desde então, não se passa um mês que eu não fique propositadamente bêbada e muito à vontade em festas. A sensação inebriante da tontura com drinks, drinks com nomes literários e cheiro de perfume, a ponta da língua amolecendo, esquecer que língua também é músculo, falar embolado, atropelar as palavras, fechar a conta e dormir com desconhecidos: tornou-se hábito. Não vou dizer que estou feliz, tampouco me preocupo com autocrítica. De alguma forma, funciona. Ter perdido minha jovem mãe para um infarto fulminante e meu pai para uma doença degenerativa me marcaram a ponto de eu ter acordado para a ideia de aproveitar a vida como nunca antes. Muito cedo tive que assumir responsabilidades e fingir que era forte nas situações mais delicadas. Ainda finjo muito bem mas, intimamente, me permito desabar.

Então, é sem surpresa que um desses momentos íntimos se deu assistindo Aftersun. Poucos filmes conseguem tocar tão bem e tão sutilmente na ferida da depressão. Melancolia é um deles e não preciso gostar de Lars Von Trier para assumir que é uma obra-prima. Aftersun tem dois personagens e duas perspectivas — e uma delas é de quem assiste.

Sophie tem onze anos e está de férias na Turquia com o pai, Calum. São os anos 90, “Macarena” é hit, o hotel está em obras, mas todo o resto é belíssimo — paisagens, o mar brilhante como uma joia lapidada. E uma câmera de mão muito trêmula documenta o momento familiar, ora nas mãos de Sophie, ora nas mãos de Calum. Ele tem trinta, um curativo no braço esquerdo e fará aniversário em breve.

Para Sophie, seu pai é a figura dos movimentos ninja inesperados e também o cara que dança mal em público. Para nós, Calum é um suicida em potencial e os sinais são evidentes, mas não para uma criança de 11 anos, por mais inteligente que seja, por mais que ela já não se veja como uma menina que faz amizade com os de sua idade e tenha interesse nos adolescentes que livremente comentam suas conquistas sexuais; ou no garoto que, de vez em quando, conversa com ela no salão de jogos.

Calum não se imagina chegando aos quarenta; ainda diz “eu te amo” ao telefone para a mãe de Sophie, embora não estejam mais juntos; quando questionado pela filha sobre como foi o seu aniversário de onze anos, antes de tentar desconversar, ele assume que foi negligenciado pela família nessa data; quando se recusa a cantar com Sophie no karaokê, uma tradição deles, lhe sugere aulas de canto, e ela pede que não prometa o que não pode pagar — a situação financeira, ou seja, é só um dos problemas da vida de Calum. O tempo todo ele diz “vamos nos divertir”, como se houvesse pressa, como se precisassem aproveitar todos os programas disponíveis na viagem. Calum quer que as férias de onze anos da Sophie sejam memoráveis. Mas por qual motivo?

Em paralelo, a “epifania na balada” — termo que um encontro muito ruim que tive usou para criticar esse filme: Sophie, vinte anos depois, no meio da pista de dança, cessa os movimentos e reencontra o pai, aos trinta anos, dançando em sua frente, no meio das pessoas, sendo que ele não está lá. Sophie em casa, revendo os vídeos das férias na Turquia, no dia do seu aniversário, tentando reconstruir a colcha de retalhos que foi a sua infância, tentando associar quem foi o pai em suas memórias e quem é o pai naqueles vídeos pois, quando o filme termina e Sophie, no aeroporto, volta para Edimburgo, Calum fecha a câmera e caminha para o vazio, deixando o final aberto com a suposição óbvia de suicídio.

Quando você perde seus pais, é assim mesmo: vai pensar neles em momentos inesperados. Quando acorda, ao tomar banho, enquanto almoça ou no meio da pista de dança. Sem contar quando sonha com eles, quando tem pesadelos. E isso te marca, para sempre. Muitas vezes nem dói. Hoje mesmo consegui contar sem chorar para duas pessoas que desconheciam a minha situação. Em outros dias, paraliso qualquer atividade e não tenho escolha que não seja permitir o abraço da crise de pânico — a sombra escura que envolve minha pele e deixa a paisagem cinza, esse momento incontrolável, a vontade de morrer com a certeza que vou morrer, sabendo que tudo vai passar em uma ou duas horas e preocupei as pessoas à toa. E é um ciclo, não acaba. Você se trata, segue a cartilha: vai ao psiquiatra uma vez por mês, ao psicólogo semanalmente. É pontual com a medicação. E daí? Não tem prazo para acabar.

Aftersun não mostra a vida de Sophie nos vinte anos sem o pai. Se ela sentiu ter falhado em algum momento, se sentiu culpa por não ter estendido a mão, por não tê-lo entendido. Mas fica aquela falta, como um membro amputado, como a música “Pedaço de mim”, do Chico Buarque. É um filme cheio de lacunas, essa é apenas uma delas.

Falando da parte “técnica”: Paul Mescal como Calum é o grande destaque. Você pode vê-lo em Normal People, minissérie inspirada no livro homônimo de Sally Rooney onde, ao contrário de Aftersun, ele interpreta alguém que salva e não quem precisa ser salvo. Mescal não tem exatamente algum carisma, nem é um galã. O encantamento dele está na ideia de ser comum, um homem que passa por nós na rua, que pode ser mais um colega de trabalho do que um crush hollywoodiano e isso é excelente em papéis dramáticos, convence melhor. É o primeiro longa-metragem de Charlotte Wells, escocesa que também assina o roteiro. Aftersun tem uma coisa bonita em sua fotografia e montagem, também presente no filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças — o efeito das cores, para quem já estudou o mínimo de psicologia sobre o assunto. Se Sophie está em um determinado cômodo, as cores são quentes, os tons entre amarelo e vermelho. Colum, por outro lado, é o melancólico azul, principalmente azul escuro. As personalidades destoantes entre pai e filha são sutilmente confrontadas em cenas de mar aberto (azul), roupas de verão (amarelo, verde, vermelho) e eles estão de mãos dadas, abraçados ou lado a lado nesses momentos.

Outro destaque é a trilha sonora. Gosto de trilhas bem pensadas, o que foi o caso desse filme. A cena com “Under pressure” me tocou muito. Se eu estivesse no cinema, ali mesmo teria chorado. No lugar disso, fiz pior: chorei no ônibus, onde tenho assistido todos os filmes possíveis, na ida e volta de qualquer compromisso. O desespero de Freddie Mercury cantando “why can’t we give love one more chance / why can’t we give love, give love, give love, give love, give love…” enquanto Calum dança e “this is our last dance / this is ourselves”. Ou o quanto é constrangedor e triste Sophie cantando “Losing my religion” sozinha no karaokê.

Aftersun também “não é para qualquer um” por ser um filme “parado”: é lento, há mais cenas poéticas do que rítmicas e as lacunas que deixa exigem interpretações muito pessoais de quem assiste. O filme não te dá as respostas que você quer, te obriga a pensar. Não é cansativo, não se estende além da conta. Mas, tenho a impressão de que pode dividir opiniões a depender da sua vivência: se você sofreu grandes perdas, vai se identificar. Se não, provavelmente vai detestá-lo muito mais por não entendê-lo. Então, assista novamente quando puder, talvez sua interpretação mude.

Ou toque seu coração, imediatamente.

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Nina Galdina

Escrevo sobre cinema porque gosto, mesmo sem conhecer a técnica. Não faço drama, faço documentário. Outros textos em https://ninaemsaopaulo.tumblr.com