Barbie: para o filme do ano, uma análise afetiva

Nina Galdina
12 min readNov 6, 2023

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Em setembro de 2019, eu trabalhava em uma loja de roupas femininas e tinha tudo para ser um dia perfeito: era o evento de lançamento da primavera-verão, meu uniforme era composto por peças da coleção (escolhidas por mim) e eu me entupiria de doces, pois as clientes estavam sempre de dieta e a empresa encomendava doces para servi-las. Cheguei pouco antes do início do expediente, por volta do meio-dia. Mas, às três da tarde, quando subi para almoçar, peguei o garfo, arrastei a comida nele e não consegui colocar na boca. Comecei a chorar, desenfreadamente. Uma sensação terrível de que estava prestes a morrer, pois de uma coisa eu tinha certeza: aquilo era um infarto. Eu não conseguia falar, estava sufocando e parecia ter uma sombra muito alta atrás de mim, me abraçando e me puxando para baixo. A gerente nunca viu aquilo acontecer. A supervisora saiu às pressas de uma reunião para me socorrer. Toda a situação era inédita para mim. Fui levada ao hospital, e na frente da médica aconteceu novamente. Ela conseguiu me acalmar com um exercício respiratório. E quando terminamos, perguntou: “você já teve uma crise de pânico antes?”. Aquela foi a primeira de muitas.

E é exatamente assim que o filme Barbie começa: Margot Robbie é a Barbie típica, estereotipada. Ela é loira, sorridente, magra e veste cor de rosa. Foi a primeira Barbie criada. Vive na Barbielândia, com as outras Barbies e os Kens. Em um dia perfeito, Barbie acorda em sua casa sem paredes, cumprimenta suas vizinhas Barbies, escolhe o que vestir, toma café da manhã de mentirinha e voa do telhado direto para o seu carro (um Corvette 1956 customizado em rosa, obviamente), rumo à praia. O dia da Barbie só é atrapalhado pelo Ken de Ryan Gosling que, para impressionar a companheira, tenta performar como surfista e falha miseravelmente. Ken pede para visitar Barbie em sua casa mais tarde, no que ela o convida para uma festa com dança coreografada e muitas outras Barbies ao redor. Ele concorda e comparece. No entanto, durante uma dança, Barbie comemora com suas amigas sobre o quanto esse dia foi perfeito, assim como o dia de ontem e o de amanhã, que também será perfeito. E no fim, ela questiona: “vocês já pensaram em m0rr3r?”

Na manhã seguinte, o dia da Barbie não é perfeito: ela acorda com mau hálito, o leite está vencido, o pão queimou na sanduicheira e ela cai do telhado. Chegando na praia e tirando o salto alto (sim, a Barbie usa salto até na praia e a areia é cor de rosa), percebe que seus pés tocam no chão e é a primeira vez que isso acontece. Conversando com outras Barbies, a Barbie é convencida a buscar conselhos sobre tudo que está acontecendo com a Barbie estranha. A Barbie estranha, uma das personagens mais surpreendentes e cativantes desse filme (interpretada por Kate McKinnon e descrita por Margot Robbie como “uma mistura de David Bowie com gato sem pêlos”), é uma Barbie underground: reza a lenda que ela ficou daquele jeito, toda suja de canetinha, com o cabelo curto e irregular e fazendo espacate o tempo todo, depois que uma criança do Mundo Real brincou demais com ela. Ela é a mais feia e destruída das Barbies, por isso mesmo responsável pela manutenção da beleza e comportamento das bonecas. Barbie estereotipada procura a Barbie estranha, que lhe conduz ao Mundo Real, onde ela deve encontrar a menina que brinca com ela, que está triste, para que o portal entre os dois mundos seja fechado. Pois a humanidade da menina está afetando na bonequice da boneca. Barbie parte com Ken em sua jornada de heroína, na qual ambos viverão aventuras inusitadas: descobrirão que o Mundo Real, diferente da Barbielândia, é governado por homens. A Mattel tentará capturar a Barbie. E Barbie encontrará a menina que brinca com ela, mas terá uma surpresa muito desagradável ao retornar para a Barbielândia.

Em 2020, com as crises de pânico frequentes e toda a mudança brusca que a pandemia proporcionou, senti que perdi o controle da minha vida e procurei um psiquiatra. Depois de quinze minutos chorando ininterruptamente, consegui explicar o que sentia, tudo que aconteceu desde a primeira crise de pânico. Recebi um diagnóstico e três remédios: um antidepressivo para o dia, um comprimido para a noite e outro para as crises. Deveria tentar por três meses, junto com acompanhamento psicológico. Me afastei do trabalho para os primeiros quinze dias de tratamento. Telefonei para os meus pais e “contei a novidade”.

Foram os três piores meses da minha vida. Comecei com a sertralina, o mais comum dos antidepressivos, o mais indicado para quem inicia o tratamento-combo de pânico-ansiedade-depressão. Meu médico era ótimo, fez questão de me afastar pelo máximo de tempo permitido para não ter que enfrentar o INSS, e ainda me explicou os efeitos colaterais e benefícios da medicação. O problema é que tive todos os efeitos colaterais. Todos. Incluindo os mais raros. Experimentei a enxaqueca pela primeira vez na vida e nunca mais escapei dela. O sono e cansaço me consumiram, ainda que eu não fizesse esforço algum. Eu não sentia fome, mas me sentia tonta. Minhas mãos tremiam e meus olhos viviam vermelhos e lacrimejando. Eu vomitava e odeio vomitar. Mas nada vai superar a fase do esquecimento. Nada mesmo, pois os três meses de sertralina afetaram meu cérebro para sempre no campo da memória, tenho certeza. Eu não sabia como tinha chegado aos lugares, uma vez desmaiei na frente do trabalho. No momento mais humilhante, telefonei para um ex-namorado perguntando qual era meu endereço, pois não sabia voltar para casa. Minha cabeça, em termos de recordações, nunca mais foi a mesma.

Resultado: fui demitida. Na mesma semana, voltei ao psiquiatra, que alterou minha medicação para a fluoxetina. Depois de quinze dias, eu era outra pessoa. A mesma Nina, só que melhor: produtiva, alegre, capaz de acordar pela manhã sem reclamar. Cinco meses depois, no início de 2021, minha mãe faleceu de infarto fulminante aos 54 anos de idade.

No início de 2022, perdi meu pai para a doença degenerativa que ele enfrentava há anos. Nessa época, eu já não fazia terapia com uma das pessoas mais legais que já conheci (obrigada por tudo, Rafael). Mas entrei em um emprego dos sonhos, que eu amava muito. A m0rt3 do meu pai, que já era esperada, me desestabilizou demais e meu corpo reagiu: adoeci muitas vezes, por consequência faltei ao trabalho muitas vezes. Em dezembro, veio outra demissão e essa doeu mais que tudo. A fluoxetina parou de fazer efeito e eu não exatamente percebia que estava, outra vez, perdendo a vontade de viver. Em janeiro de 2023, troquei a fluoxetina pelo escitalopram que, apesar do nome, não me excitava em nada. Continuei sem vontade de viver, mas pensei que estivesse bem porque isso não transparecia externamente: eu não chorava assistindo filmes dramáticos, por exemplo. Eu não me apaixonava mais quando me relacionava com alguém, eu não sorria se estivesse sozinha e visse algo engraçado. Eu não tinha reação para coisa alguma, nada me comovia. E, na minha cabeça, eu estava ótima.

Nesses três anos de tratamento, tentando acertar a medicação, perdendo pessoas e colecionando diagnósticos (recentemente mudei de psiquiatra e ganhei “depressão recorrente” enquanto a química do meu corpo se equilibra na base de desvenlafaxina, até que ela também pare de fazer efeito), conheci o meu novo terapeuta. Eu o chamo de “terapeuta-gato” porque ele é muito bonito mesmo. E tenho certeza que sou o amor da sua vida, mas ele se encontra em estado de negação, coisa que precisa resolver em sua própria terapia, não comigo. Falando sério, o terapeuta-gato está me salvando, sem necessariamente ser um desses terapeutas de série americana, que se envolvem demais e chegam a abraçar o paciente. Mas também, se fosse assim, eu iria gostar. Ele conversa comigo. Como se eu fosse uma pessoa muito interessante e eu não me sinto esmagada e subestimada como me sinto perto de todo mundo. Nem sempre sou o assunto, prefiro quando o assunto é ele. O que ele fez durante a semana, como foi ter sido criado por pais terapeutas, ou sobre sua estranha adolescência como metaleiro-carnavalesco. Às vezes ele lê para mim e eu choro. Comprei alguns livros por indicação dele. Não gosto quando meus pais são o assunto, por sentir que já esgotei esse assunto. Ele ri. Meus pais sempre serão os antagonistas na minha terapia — as pessoas que odiei, amei e perdoei; ainda que estejam m0rt4s e que tenham me prejudicado tanto que hoje minha autoestima foi destruída, considero-a irrecuperável e costumo me sabotar como uma viciada em drogas. E o terapeuta-gato é freudiano, imagino que demonizar nossos pais na frente de um freudiano seja algo comum.

Nesses três anos, além dos meus pais, também sofri outras perdas: uma amiga com pouco mais de trinta anos foi contaminada pela água na Índia e o sonho dela era viver lá, tudo foi muito rápido. Outro amigo, após todas as vacinas, faleceu de covid. Tive um grande amor e deixei ele ir embora porque a minha doença, então desconhecida, prejudicava nosso relacionamento. Eu não queria que alguém quatro anos mais jovem e que nunca tinha namorado na vida carregasse esse trauma. Depois, traí alguém que me amou muito e isso tem a ver com a auto-sabotagem citada no parágrafo anterior. Então prometi que nunca mais namoraria enquanto fosse uma pessoa mentalmente instável. Depois caí na real de que provavelmente não tenho cura, mas consegui passar um ano sem me comprometer. De maio para cá, conheci alguns homens, graças ao advento dos aplicativos de relacionamento. Fiquei próxima de três, mas com um deles tenho maior e melhor convivência. Ele comprou um bolo de aniversário para mim, no que fiquei bastante comovida. E, recentemente, me fez chorar em uma das conversas mais importantes que tive com alguém, me fazendo enxergar que estou viva apesar de tudo que passei e o que existe é olhar para a frente ao invés de ser uma versão pior de mim e cheia de lamentações. É muito importante ouvir as pessoas mais velhas, elas realmente sabem de tudo.

Depois de unir mãe e filha e salvar a Barbielândia do domínio dos Kens que instauraram o patriarcado no mundo das bonecas, Barbie conclui que talvez ela não deva ter um final, como se tivesse que segurar a mão de um Ken arrependido, perdoá-lo e viver feliz para sempre. Quando a criatura encontra sua criadora, Barbie percebe que não quer ser uma ideia, ainda que os humanos tenha só um destino (a m0rt3), enquanto ideias vivem para sempre. Ela quer fazer parte das pessoas que pensam e executam ideias. Barbie quer ser humana. E ela consegue.

Barbie é exatamente a comédia que eu escreveria sobre uma mulher com depressão. No X (ex-Twitter), o usuário Ababelado Mundo escreveu: “eu fui ver Barbie semana passada com uma amiga que toma antidepressivos e ansiolíticos há muito tempo, e o melhor comentário dela foi que o filme é basicamente a história de uma mulher que de repente parou de tomar sertralina”. Em julho, a revista Galileu publicou em seu site um artigo cujo título é “5 temas sobre saúde mental retratados no filme”. Barbie contém uma história muito própria de sua geração: Greta Gerwig, a diretora, é uma típica millennial. Os millennials viram seus sonhos despedaçados pelo capitalismo e avanço tecnológico, mas parcialmente reconstruídos por esperança de dias melhores e muita nostalgia. Estamos revivendo o passado anos 90/2000, algo evidente também no figurino de Barbie. Após uma pandemia, em que a saúde mental de todos nós foi arrasada (sou apenas um entre tantos exemplos estatísticos), um evento como Barbie, a nível mundial, quebrando recordes em bilheteria e levando famílias ao cinema vestindo rosa — era exatamente o que precisávamos. Com roteiro de Gerwig e seu marido, Noah Baumbach, Barbie é sagaz inclusive quando aborda transtornos mentais. Há uma cena inteira dedicada a isso, pois o que acontece na Barbielândia começa a afetar o Mundo Real e, enquanto a Barbie de Margot Robbie sofre uma crise existencial com a mudança de seu próprio universo, no Mundo Real a Barbie que passou o dia inteiro vendo fotos do noivado da ex-melhor amiga no Instagram enquanto assistia Orgulho & Preconceito (meu filme favorito, detalhe, só que na versão de 2005. Me senti MUITO contemplada) é ofertada às meninas. Ansiedade e crises de pânico vendidos separadamente.

Barbie proporcionou cenas belíssimas, talvez inesquecíveis para o cinema. Como quando ela encontra, na rua, uma mulher idosa e diz: “você é tão bonita!”, essa cena diz tanto… já revela o quanto Barbie admira a humanidade. Admiração que se transforma em desejo, posteriormente. Nenhuma outra atriz faria melhor esse papel do que Margot Robbie. Ela só queria produzir o filme, mas foi a melhor protagonista possível. Pois Margot é Barbie e Barbie é Margot; depois desse ponto, ficou impossível desassociá-las. Margot tem o sorriso da Barbie e, mesmo quando chora, ainda é a Barbie. Uma Barbie que é pura beldade, mas nada sexualizada. Margot tem a mesma qualidade de Audrey Hepburn no auge de sua beleza (o que durou sua vida inteira, praticamente): ela também tem o rosto de um anjo. Margot tem 6 letras, Barbie tem 6 letras. Coincidência? Acho que não.

Da mesma forma, outra grande surpresa do filme foi a dedicação de Ryan Gosling em contar a história do Ken. Na vida de todo mundo que foi criança e brincava de Barbie, Ken nunca teve relevância, era só um acessório da Barbie e, como todo acessório, também era opcional. Todos os comentários fazem jus a atuação de Gosling: de fato, é o papel da vida dele. Gosling nunca esteve tão expressivo, fez o Ken ser bobão e companheiro enquanto sombra da Barbie, mas também ambicioso para liderar sua revolta. Quem assistiu em IMAX teve a oportunidade de vê-lo nos bastidores e é notável o quanto ele se divertiu e divertiu a equipe.

Outra ótima cena é quando Barbie acredita não ser boa o suficiente em nada, no que o discurso de America Ferrera é forte o bastante para fazer dela ao menos candidata ao Oscar de atriz coadjuvante. Barbie deve ganhar todos os prêmios da próxima temporada. E se não, valeu pelo evento, a espera, todos os looks que preparei um ano antes do filme e a superação de expectativas. Eu sabia que seria bom, mas não esperava que fosse TÃO bom. Barbie tocou em feridas atuais e impressionantes. Nenhuma pessoa envolvida na produção desse filme acreditava que ele sairia do papel, afinal, a história do filme tem cara de algo só permitido após se tornar domínio público, mas a Mattel aprovou a zombaria até com ela mesma. A autocrítica está lá, servindo para vender bonecas ou não. O lucro do hype do filme da Barbie não está apenas no cinema: milhares de produtos licenciados foram criados, assim como bonecas inspiradas no filme. Aqui em São Paulo, uma casa da Barbie em tamanho real foi montada, também uma loja da Barbie e estive nesses eventos. Se eu sobreviver a tudo isso e tiver filhos um dia, gosto de pensar que mostrarei minhas fotos vestindo rosa aos trinta e um anos de idade sem me importar com o quão ridículo isso parecia na época, não me arrependo. Barbie foi meu hiperfoco de 2023, que me levou ao cinema oito vezes. Fui uma criança privilegiada e tive muitas bonecas Barbie, então, esperei por esse live-action desde que nasci — que bom viver em um momento em que isso foi possível. Mas espero que Barbie fique datado em breve, com relação aos seus temas. É sim um filme feminista, que fala sobre como a opressão em cima das mulheres afeta nossa saúde mental. Nenhum outro blockbuster ou série da Netflix conseguiu abordar tão bem esse assunto e de forma tão leve, capaz de arrancar risadas. Sendo otimista: em vinte anos, espero que as próximas gerações não vejam sentido em Barbie tanto quanto a minha vê agora. Também é importante dizer que Barbie não é um filme para crianças — é um filme para mulheres de trinta anos ou mais, bem-sucedidas ou não, à beira de um ataque de nervos, tentando tocar suas vidas, fazendo o melhor que conseguem. Barbie é uma declaração de amor feminina e feminista, uma bandeira hasteada cheia de ressignificação. Barbie is everything.

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Nina Galdina

Escrevo sobre cinema porque gosto, mesmo sem conhecer a técnica. Não faço drama, faço documentário. Outros textos em https://ninaemsaopaulo.tumblr.com