Druk: mais uma rodada
Há formas de manifestar arte que influenciam demais em nossas vidas e, a partir delas, criamos hábitos bons e ruins. Quando li Meu ano de descanso e relaxamento, da Ottessa Moshfegh, coloquei em prática a ideia de me dopar e dormir por longas horas, tendo duas de intervalo para “viver”. A leitura do livro coincidiu com o início do meu tratamento psiquiátrico, mas eu só poderia ficar dopada nas festividades de fim de ano. É difícil atravessar essa fase sozinha e colecionando perdas, é muito fácil pensar nas piores coisas para fazer contra si mesma. Ficar dopada é um meio-termo aceitável: você não está se matando, mas flerta com a possibilidade.
Quando comecei a usar aplicativos de relacionamento, tive a sorte de conhecer um cineasta. Digo sorte porque, com ele, tive os melhores diálogos sobre cinema: ele permitia que eu falasse o que quisesse, qualquer bobagem era permitida. Por isso, achei que estivesse apaixonada e nos afastamos. Quando um ano depois tentamos reaproximação, ele me contou que se emocionou muito assistindo Druk na passagem de ano-novo — lhe fez lembrar do pai e do fato de que ele mesmo parou de beber por conta do alcoolismo. Lembro que ele tinha várias garrafas de vinho em casa para as visitas, mas nunca bebia junto. Nem sozinho. Ele também tinha uma rede em casa, obviamente um projetor, e estava escrevendo um livro sobre cinema — mas nada disso entra na história.
Druk é um vencedor do Oscar (melhor filme internacional de 2021) que coloquei na minha lista de “preciso assistir” assim que foi lançado, mas outros filmes passaram na sua frente, até que o esqueci. Recentemente foi anunciado como a grande estreia de fim de ano na Netflix, então lembrei do cineasta e do quanto sua voz estava emocionada quando me falou desse filme, ele fazia indicações muito confiáveis. Na Dinamarca, quatro professores, três deles do ensino médio e um de educação básica, estão insatisfeitos com suas vidas de um modo geral: um deles é pai de três crianças pequenas e diariamente acorda com urina delas na cama de casal; o outro é professor de educação física, outro de música; e tem o Mads Mikkelsen que, distante do grande circuito Europa e Estados Unidos de cinema, despe-se quase que completamente de seu sex appeal e vocação para vilão ao interpretar um homem absolutamente comum. Martin, seu personagem, é professor de história, casado e pai de dois filhos adolescentes. Seu trabalho é em horário comercial, ao contrário de sua esposa. Quando ele chega em casa, ela está praticamente se arrumando para trabalhar a noite inteira. Uma dinâmica meio Tomas e Tereza já em declínio em A insustentável leveza do ser, quando ele deixa de ser médico para tornar-se limpador de vidraças e ela fica como garçonete no horário noturno. Ou, se isso fosse uma comédia, a música Ela é dançarina, do Chico Buarque, que conta a história de um funcionário público que se apaixona por uma passista de carnaval. No início do filme, Martin é confrontado por seus alunos do último ano que pretendem aplicar para a universidade, mas a forma de ensino do professor não os ajuda. Há uma insatisfação geral entre o pessoal e o profissional nas vidas desses professores.
Uma noite, Nikolaj, o pai de três bebês, faz aniversário e convida os amigos para jantar. Ele mesmo fala dessa interessante teoria sobre o nível “ideal” de álcool no corpo, com a qual se deparou. É quando Martin tem um momento de epifania sobre o quanto sua vida está sem perspectiva, como se estivesse no fim, em comparação aos quarenta anos recém-feitos de Nikolaj. Outro dia estive no aniversário de uma amiga que escolheu comemorar em um rodízio de vinhos que me lembrou essa cena, pois o garçom passava pela mesa oferecendo e narrando as qualidades das bebidas, enquanto eu ficava cada vez mais bêbada (sou fraquíssima) e Martin era o único que não deveria beber, tendo em vista que pretendia dirigir. Mas acaba cedendo, ficando mais deprimido. No dia seguinte, por conta própria, coloca a ideia em prática: bebe antes e durante o serviço e sugere que os outros faça o mesmo. Para dar um sentido maior ao que estão fazendo, Nikolaj propõe que seja publicado um artigo com tal experiência. Todos aceitam, Nikolaj começa a escrever e esses capítulos dão o tom do filme, dividindo-o em partes, como o documentário de um experimento social.
Essa ideia é 100% uma ideia de homem hétero e, obviamente, só pode dar errado. Nenhum deles é discreto levando o projeto adiante, não tem como ser. Pessoas alcoolizadas não oferecem discrição. São cambaleantes, falam alto demais, transpiram mau-cheiro — em um determinado ponto do filme, isso fica claro, é jogado na cara deles. Inicialmente, sobretudo no campo profissional, tudo parece um mar de rosas: as aulas fluem, a vida sexual é reativada, então, que tal elevar o nível? Mais uma dose? É claro que eu tô a fim.
E então, o declínio: o casamento de Martin, que parecia ter reacendido a chama da paixão, entra em um conflito quase sem volta. Nikolaj sobrecarrega a esposa, que chega a tornar-se mãe do próprio marido. Peter, o professor de música, incentiva um aluno a beber antes da avaliação final que pode decidir se ele vai para a faculdade ou se repete o ano. E Tommy, o professor de educação física, esse é quem mais sofre com o alto nível alcoólico no corpo.
Dirigido por Thomas Vinterberg, Druk é um filme tão bonito, com essa cara de cinema independente e que oferece, no final, uma sequência maravilhosa de Mads Mikkelsen dançando e é por esse motivo que amo cinema. Quero reproduzir essa cena, um dia, quando estiver bêbada o bastante e estivermos nas ruas comemorando seja lá o que for. Como quando rodopiei ao som de David Bowie no meio da Faria Lima, com meus fones de ouvido, me sentindo Frances Ha e ninguém entendeu. Druk quase entra nessa lista que ainda vou fazer, de filmes sobre o nada. Nada em específico acontece, são apenas pessoas comuns tomando decisões ruins, vivendo suas vidas e acertando corajosos passos de dança que só uma boa cerveja pode permitir.