Guerra fria e As intermitências da morte

Nina Galdina
4 min readMar 16, 2024

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Os amores difíceis podem ter narrativas simples. Meus livros favoritos, em geral, são romances breves. E como breve, estou falando de poucas páginas mesmo. Por exemplo Na praia, de Ian McEwan; e Noturno indiano, de Antonio Tabucchi. Ambos já foram adaptados ao cinema, mas só assisti Na praia depois de muito brigar comigo mesma, porque leio o livro imaginando cenas na minha cabeça e o filme que faço dele jamais será igual ao resultado final que chega ao cinema pela condução de outra pessoa. Eu também relutei muito em ler As intermitências da morte, de José Saramago, mas depois de duas perdas significativas na família e um grande amigo que também se foi, no início do ano pensei: é agora. E foi assim que As intermitências da morte, um dos livros mais curtos de Saramago, passou na frente de Todos os nomes, até então meu favorito dele.

Em As intermitências da morte, a morte é protagonista. Ela escreve cartas em papel roxo e assina em minúscula. Um dia, a morte decide fazer greve no país que representa. Os doentes permanecem definhando, sem nunca morrer. Familiares cruzam a fronteira com o moribundo para que o sofrimento termine. O su.i.cí.di.o não é opção. São páginas e páginas da reação desse país diante da greve da morte. Você escuta as vozes dos coveiros, dos que trabalham em necrotérios e funerárias. Religiosos e políticos entram na discussão; porque temer a morte é o sentido das religiões e se ela faz greve, é um problema de saúde pública. Quando a morte decide vir a público se explicar, ela também informa que a greve acabou, mas que agora todo cidadão receberá uma carta sete dias antes de morrer, um aviso prévio. Eis que uma dessas cartas é devolvida, o que faz a morte ir atrás do destinatário, mas acaba se apaixonando por ele, um violoncelista.

Em Guerra fria, filme de 2018, também é a música que une o casal Zula e Wiktor. Dois professores de música procuram, em regiões rurais da Polônia, talentos para integrar sua escola de artes. Zula se destaca no canto e Wiktor, seu professor e regente, se apaixona por ela, que também corresponde. O romance deles começa logo após o fim da Segunda Guerra e se estende por quinze anos. Dado o contexto histórico, parece existir muito para contar, mas o diretor, Pawel Pawlikowski, escolhe focar somente nesses dois e nos momentos que eles passam juntos, deixando para quem assiste a ciência daquele momento na Europa, mas também a imaginação sobre como Zula e Wiktor levaram a vida enquanto separados. O filme é em preto e branco, tem menos de duas horas e elas passam muito rápido (infelizmente).

Nós estamos aqui observando uma das mais estranhas e belas histórias de amor, inspirada nos pais de Pawlikowski. É “o amor mal feito depressa”, para citar Chico Buarque. Um amor sempre interrompido, cheio de percalços, se reencontrando em diferentes cidades. Mesmo que Wiktor esteja namorando e Zula tenha se casado, eles ainda se desejam. Só que não há espaço para clichês. O mundo é tão duro com eles, a realidade é tão bruta, que se permitem até mesmo tratar um ao outro com frieza. Se amam, mas parecem não ter sentimentos. São objetivos, falam exatamente o que pensam, porque sabem que têm pouco tempo disponível. Amantes são intuitivos.

Por ser um filme que trata a música como forma de conexão, obviamente a escolha do repertório será importante. Na primeira parte, é apresentada ao público uma canção que atravessará a história do casal e ganhará versão francesa quando Zula começa a fazer sucesso em Paris. Você sai da ruralidade polonesa e alcança o auge cosmopolita — cigarros, vestidos justos, delineado nos olhos e taças de vinho. É no visual de Zula que a história evolui, mas é em Wiktor que o tempo passa. Wiktor envelhece mal, se encontra muitas vezes em apuros. E esse é o tipo de casal que abandona o conceito de fidelidade para abraçar a lealdade. São tão leais um ao outro, tão “até que a morte nos separe”, que levam essa afirmação até as últimas consequências.

“No dia seguinte ninguém morreu” — assim começa As intermitências da morte, porque ela decidiu fazer greve. E com essa mesma frase termina, porque ela se entregou ao amor por um humano. Quantas histórias de amores impossíveis somente a ficção torna palpável? Em Todos os nomes, Saramago faz o oposto: um homem que trabalha em um cartório se apaixona por uma mulher que já morreu. Em Asas do desejo, de Wim Wenders, um anjo decide tornar-se humano para viver ao lado de uma mulher. Em Guerra fria, Wiktor e Zula são absurdamente diferentes e talvez dêem certo pela expectativa do reencontro, pois o convívio acabaria com eles. Às vezes a saudade é um sentimento menos pior que o amor. Mais suportável, sem dúvida.

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Nina Galdina

Escrevo sobre cinema porque gosto, mesmo sem conhecer a técnica. Não faço drama, faço documentário. Outros textos em https://ninaemsaopaulo.tumblr.com