Meu ano de descanso e relaxamento
Ano passado decidi que 2020 seria meu ano de retorno à literatura. Falando assim, parece que vou reestrear numa grande editora, mas na verdade eu só queria voltar a ler.
Eu parei de ler.
Quando vim para São Paulo, fazia de tudo para não me firmar, por isso não comprei livros, não os trouxe, semi-abandonei a melhor das atividades. Minha biblioteca portátil, cerca de 400 livros conseguidos clandestinamente na internet, está no meu aparelho Kobo, concorrente do Kindle, mas ele começou a pifar e sou vintage, gosto de tocar em papel, sou ativista pelo direito da continuidade de livros impressos, esse é o meu clube.
Dois anos nessa cidade e chutei o balde, 2020 começou e decidi comprar algumas obras e pelo menos dois livros “do momento”, sendo que minha maior curiosidade foi investida nesse livro da Ottessa, com todos os tons de pastel millennial na capa e tradução da Juliana Cunha. Pensei: deve ser bom.
O resultado foi melhor que o esperado, o segundo livro do ano é o melhor de todos. Duvido que qualquer coisa que eu leia depois disso o supere.
Não recomendo nesses tempos de quarentena porque é um sofrimento. Mas recomendo sim, se você não for tão frágil quanto eu.
A protagonista, um ano mais nova que eu (tenho 27), não se identifica por um nome, mas faz questão de pontuar que é linda, parece uma modelo de tão magra e alta, é bem nascida, jovem, tem instrução, trabalha numa galeria bem frequentada, mas na verdade não precisa. Ela vive da fortuna dos pais, que faleceram tragicamente, o que a traumatizou. Ela não exatamente odeia o próprio trabalho, mas detesta quem expõe lá, essa gente que faz bizarrice achando que contribui para instigar o mundo. Dorme com um cara que trabalha nas Torres Gêmeas, é o tipo de idiota que a despreza — na minha cabeça, ele é um faria limer — vivem uma relação conturbada com doses frequentes de humilhação da parte dela. Sua melhor amiga, Reva, também é uma pessoa que ela finge gostar, o oposto de si: não tão bonita, tagarela, é pobre e cafona fingindo ser rica, abusa de gordofobia, vive de aparências e dorme com o chefe, que é casado. Ela não a suporta, mas Reva é praticamente a única visita que recebe, a única pessoa que se importa com ela, ainda que superficialmente.
O Caio começou a ler esse livro junto comigo e, provavelmente por conta desse panorama, desistiu. Todo mundo nesse livro parece personagem da Lena Dunham na série Girls: gente que se odeia convivendo sem saber o por quê. Mas a verdadeira razão da obra, narrada em primeira pessoa, é a seguinte:
É o ano 2000. A protagonista sente prazer em dormir, a vida só faz algum sentido para ela quando inconsciente — pega os horário de almoço do trabalho e dorme, faz tanto isso que finalmente consegue o que queria: perder o emprego. Ela volta para casa e dorme (mais). Acorda, assiste filmes dos anos 80 e 90 até pegar no sono novamente. Whoopi Goldberg é sua pessoa favorita. Um dia, ela pega uma lista telefônica e disca para o número qualquer de uma psiquiatra. Marca uma consulta. Chegando lá, descobre uma mulher excêntrica. Inventa todo tipo de sofrimento que desencadeia naquela psicologia infantil de convencer o outro que você precisa de algo, mas sem manifestar que a ideia foi sua. A doutora cai nessa e receita vários antidepressivos, os mais variados soníferos para que a nossa heroína, risos, inicie seu projeto de se dopar por um ano inteiro, o que dá título ao livro, o que ela chama de Meu ano de descanso e relaxamento.
Em momentos nos quais está acordada, ela reflete sobre a vida e tenta aumentar a dose, indo com frequência ao consultório, sendo uma boa paciente, sempre narrando episódios nos quais não consegue dormir e precisa de “algo mais forte”. O resultado disso são os delírios e episódios de sonambulismo, comprando futilidades absurdas de cara, coisas que seu dinheiro pode sim comprar, ganhando uma personalidade aparentemente eufórica que não é tipico dela e não lembrando de nada na manhã seguinte. A psiquiatra sendo uma personagem totalmente irresponsável é algo que considero meio preguiçoso, mas não interfere na narrativa.
A protagonista narra como era o convívio com seus pais, lidando com uma mãe narcisista e um pai apático. Cresceu e se envolveu com um homem desprezível. Odeia as visitas inesperadas de sua melhor amiga. Passa metade do livro e você se pergunta o que ela quer, até onde vai o plano de dormir por um ano inteiro, com curtos intervalos acordada; para esquecer da vida, curar feridas, se alienar. Morrer, talvez, já que a depressão é tão óbvia? É aí que vem o estalo, a lâmpada da grande ideia flutuando acima de sua cabeça. E ela toma uma decisão.
A protagonista é feita para ser detestável e ela narra sobre suas pessoas de convívio como tão detestáveis quanto. Mas, pelo menos comigo, rolou uma identificação. Todo mundo é detestável em algum nível, asqueroso, até. Uma pessoa com depressão não vai exatamente falar bem de todo mundo e criticar quem está ao seu redor faz parte do processo de se abraçar a uma doença mental e entregar para Deus. Estar com depressão faz a gente criar situações que propositadamente nos faz mal. Eu não sei porquê, mas tem um trecho desse livro que eu não esqueço: quando ela pede ao seu amante faria limer que ele compre um aparelho vídeo-cassette porque o seu quebrou. Ele a presenteia, contra sua vontade, com um aparelho DVD, que aqui representa de forma nada sutil o presente e um pouco do futuro que ela não está acompanhando. Ela podia comprar o vídeo-cassette, ela tem dinheiro, podia fazer um esforço e sair de casa, já que costuma sair para comprar sorvete na esquina. Embora ver pessoas lhe exija um esforço descomunal, dá para entender a razão disso, de pedir a uma pessoa que lhe odeia, mas que lhe dá prazer, algo que ela não quer fazer, porque não quer lhe ver.
E, no entanto, ela não é a única figura problemática de sua história. Em segundo plano fica Reva, que a autora insere ali como dois recursos: para espantar a solidão da protagonista, mostrando que ela tem algum laço; mas também para criar esse jogo de espelhos em que o dinheiro fala. Reva mora mal, come mal e certamente dorme mal também — sozinha ou com o chefe compromissado. Parece que gasta todo o dinheiro em imitações de grife, para se manter num status, para impressionar pessoas. Suas roupas mal cabem em seu apartamento ruim cujo aluguel ela se esforça em pagar. Sua origem, humilde, é o que grita quando vê a amiga, que tem tudo na vida, de ter ganho na loteria genética até sua despreocupada situação financeira, jogando tudo para o alto se aprofundando em sono promovido por remédios controlados. Dá raiva, sim. Dá para entender Reva. Mas Reva precisa de acompanhamento psicológico tanto quanto sua amiga. A questão é que ela não pode e isso sim é sutil no livro. Reva não tem recursos porque segue direitinho a cartilha da sociedade capitalista, fazer terapia não é uma prioridade, nos Estados Unidos nem existe sistema de saúde gratuito. Eu amo as personagens desse livro, mas sobretudo as femininas — elas têm defeitos, têm conflitos, são feitas pra gente amar odiar. E se compadecer.
Meu ano de descanso e relaxamento de propósito figura meses antes do 11 de setembro de 2001 e tem um dos melhores finais literários que já tive a oportunidade de encontrar. Inícios são impactantes, mas um final tão bom quanto esse não vejo desde A Praia, de Ian McEwan. Ando lendo pouco.
Ottessa Moshfegh também me proporcionou aquela sensação invejosa e maravilhosa de “eu queria ter escrito isso”. Queria mesmo. Poucos livros conversaram comigo tão bem, poucos exerceram essa força de me encontrar e me encaixar em várias linhas. Ando lendo pouco, mas os livros são como os amigos — eu tenho poucos, mas bons amigos. Eu leio poucos, mas bons livros.