The billion dollar code
O ano era 1999, eu tinha sete anos e a internet ainda estava inacessível para a maioria dos brasileiros. Computadores eram destinados a empresas, não para uso pessoal, como a televisão. Por isso meu pai me levou em seu escritório e apresentou sua nova mesa de trabalho. Nela, constava um computador e a internet discada tão característica da época, além de um disquete ao lado do mouse. Tenho essa lembrança nítida porque, hoje reconheço, foi um evento canônico, ainda que eu não tivesse capacidade de compreensão naquela época.
Quando recentemente assisti Oppenheimer, uma frase do filme fixou na minha cabeça, dita pelo personagem-título. Ele conjectura sobre as consequências da criação de uma bomba atômica e conclui que “o mundo nunca mais será o mesmo depois disso”. Fiquei pensando em momentos da História que eu tenha vivido ou acompanhado e que mudaram tudo. O 11 de setembro, talvez? A internet, com certeza.
Naquele dia, no escritório do meu pai, ele me ensinou a manusear o mouse, entrou no site da Barbie e eu passei alguns minutos vestindo e maquiando bonecas em jogos online. A partir dali, troquei os pedidos por livros de colorir da banca de jornal que ele comprava após o expediente e antes de voltar para casa, por idas ao serviço dele. Eu queria “passar mais tempo com a internet”. Nunca tivemos computador em casa, mas lan houses já foram febre, assim como paletas mexicanas e design de sobrancelhas. Com apenas 1 real, você passava uma hora na internet. Eu deixava de pagar o lanche na escola para viver esses momentos, porque nunca tivemos computador em casa, apesar de eu e meu pai amarmos a ideia, mas custava caro. Eu gostava tanto de “morar na internet” que fiz TI, um dos maiores arrependimentos da minha vida, mas essa conversa fica para outro momento, quando discutirmos o fato de que sou uma pessoa analógica, embora finja muito bem que não. Mas foi por causa da internet, e da minha mãe que lia meus diários, que tive blog em 2006 e nunca mais parei de escrever como se estivesse no ano de 2006: sem o menor medo de julgamento, “cancelamento” nem existia; também sem medo de escrever para não ter que impressionar, não ter que provar coisa alguma; desabafar, apenas. A internet dá voz a qualquer pessoa, todo mundo tem capacidade de se expressar sem ficar refém de algo que diga que você pode ter voz. Aprovação prévia não é necessária. Você vai na internet e grita para quem quiser ouvir. Por isso temos tanta gente falando bobagem e a Mallu Magalhães se tornou cantora profissional.
Mas as caixas de comentários em blogs deram lugar a redes sociais e caixas de comentários em portais de notícias. A internet se tornou um campo minado digno de ficção científica especulativa e catastrófica. De “terra sem lei” para pouco debate possível, somos vencidos pelo cansaço no Twitter, temos falsas vidas de sucesso do Instagram ao LinkedIn e “ninguém mais está no Facebook, porque é rede social de gente velha”. Em dez anos, com otimismo, todas essas redes se tornarão obsoletas, substituídas por novas redes ou novas versões de redes sociais, e o meu texto ficará obsoleto, e vou reler isso aqui e pensar no quanto eu só sabia reclamar da vida, do progresso e tudo mais.
Penso constantemente no meu pai quando alguma novidade tecnológica surge. Quase dois anos após sua morte, me pergunto o que ele pensaria do ChatGPT, por exemplo. Entendo como o início do fim da criatividade artística, porque ainda entendo arte como esforço físico e mental. Ele acharia o máximo. Passaria dias se divertindo, enviando comandos para uma máquina que criaria imagens, textos, mundos. E tentaria me convencer, com detalhes, que aquilo é o maravilhoso futuro e não “o inimigo”. Em contrapartida, eu diria o quanto esse “maravilhoso mundo” me assusta.
E toda essa discussão de arte “contra” tecnologia me lembra o início de The billion dollar code; quando Carsten Schlüter, um jovem artista visual interessado em criar arte digital, é encontrado por Juri Müller, programador. O ano é 1994 e o cenário é Berlim em início de reunificação.
No meio artístico, Carsten se sente incompreendido por colegas e professores — ele não é do tipo que manipula pincéis e telas para fazer arte, suas instalações dependem de computadores. Mas os artistas de sua época entendiam a tecnologia mais como inimiga do que aliada na capacidade de fazer arte. Uma noite, expondo em uma boate imagens de satélite em pequenos monitores, Carsten é abordado por Juri, jovem fascinado por sua criação, mas que também oferece ajuda com os visíveis problemas de programação na exposição de Carsten.
Juntos, eles se tornam amigos e pensam em um mundo no qual mapas serão acessíveis para qualquer pessoa, independente de onde estejam. Elas poderiam revisitar virtualmente o bairro no qual passaram a infância, ou conhecer o Cairo. Familiar, não é? Essa poderia ser a história da criação do Google Earth, mas na verdade é sobre como o Google roubou a ideia de um projeto do qual você provavelmente nunca ouviu falar: Terravision. The billion dollar code é uma minissérie de quatro episódios, da Netflix, e é livremente inspirada em uma história real.
Carsten e Juri fundam uma pequena empresa: ART+COM, que passa a ter funcionários tão jovens e sonhadores quanto seus fundadores. Só que a ideia do Terravision era tão visionária que não havia como torná-la realidade, a não ser que eles tivessem acesso ao financiamento ideal, o que também exigia computadores melhores. É aí que a Deutsche Telekom entra, assumindo o projeto ousado que a empresa de Carsten e Juri precisa apresentar em Quioto, no prazo de um ano. Essa corrida contra o tempo marca a primeira parte da minissérie.
A passagem do Terravision por Quioto foi um sucesso tão grande, que Carsten e Juri são levados a conhecer o paraíso dos nerds, o Vale do Silício. Esse lugar com escritórios coloridos, poucas paredes separando cômodos, aparente ausência de hierarquia e junkie food em todo lugar — enfim, os precursores de qualquer startup da Faria Lima. Ambiente tão livre que parece tudo, menos uma empresa. E um ídolo de Carsten e Juri espera por eles, interessadíssimo no algoritmo de Juri para o Terravision. Este é Brian Anderson.
Dez anos depois, Carsten, em seu escritório, abre um site e lê um artigo sobre o Google Earth. Na demonstração, tudo no Google Earth se assemelha ao Terravision. O próprio artigo deixa clara a criação e colaboração de sucesso entre Brian e sua nova casa, o Google. Mesmo com a cópia escancarada, Juri se mantém ingênuo, acreditando que Brian é seu amigo — o estado de negação é uma coisa impressionante. Apesar da ART+COM conseguir a patente do Terravision, os advogados do Google não manifestam interesse em comprá-la, no que Carsten e Juri descobrem que é muito caro processar uma grande corporação como o Google. Eles são desencorajados por diferentes advogados. Então, impossibilitados de mostrar ao mundo que eles foram pioneiros com o Terravision, aos poucos a empresa se dissolve. Carsten continua trabalhando com arte, mas Juri decide voltar ao seu país de origem, a Hungria, para lidar com jardinagem.
The billion dollar code começa com o sonho conjunto de um artista e um programador, mas também apresenta o ensaio desses dois, junto com seus advogados, no processo que eles são conduzidos a mover contra o Google. Um escritório de advocacia se interessa pelo problema e os convence a tentar vencer essa batalha. Mas toda a situação está contra eles, agora mais sábios porque mais velhos: muitos anos se passaram; o Google alega não ganhar dinheiro através do Google Earth; o julgamento acontece em tribunal americano e um júri popular, completamente leigo, deve decidir se o Google cometeu plágio na execução do Google Earth, em cima de todo o código criado para o Terravision.
Quantos casos de sucesso envolvendo homens no ramo da tecnologia você conhece? A História recente já nos trouxe biografias escritas e audiovisuais sobre o tema. Variações do mesmo tema: são pelo menos dois filmes sobre Steve Jobs e o excelente A rede social, sobre Mark Zuckerberg e a criação do Facebook. Adoro esse tipo de enredo. Infelizmente, Darren Aronofsky vai manchar o próprio currículo com um filme sobre a vida de Elon Musk, mas vamos torcer para que seja incrível. A diferença entre essas obras e The billion dollar code é que esse último é a história de um fracasso.
E também é a história de como a saúde mental em desequilíbrio afeta todas as áreas de nossas vidas e impacta em como somos julgados, como os outros nos vêem. Um dos momentos mais emblemáticos da minissérie é quando Juri é confrontado, durante o ensaio, sobre suas crises de ansiedade e hiperventilação. Sua reação ao confronto é tão ruim que, caso acontecesse no momento definitivo de seu depoimento, o júri presente não o perdoaria. Pessoas “normais”, socialmente aceitas, raramente compreendem neuroatípicos. Para eles, somos uma aberração, vida alienígena, pessoas sem controle emocional ou capacidade de seguir regras.
Desviando um pouco, porém nem tanto: na última temporada da série Atlanta, que também faz parte do catálogo da Netflix, há um episódio em forma de documentário sobre um CEO negro que a Disney teve nos anos 90. Suas ideias eram tão inovadoras, mas ele era tão exigente consigo, tão empolgado em contar a história da população negra norte-americana através de uma animação para a Disney, que seu psicológico foi se deteriorando. A tal ponto, que as circunstâncias de seu falecimento precoce levam ao caminho contrário da conclusão de acidente. Não se falava sobre saúde mental nos anos 90 e, embora esse assunto seja constantemente abordado dentro e fora de grandes empresas, ainda é consenso que sucesso profissional e transtornos psicológicos e psiquiátricos não andam de mãos dadas. Esse CEO nunca existiu e o fato de ser ficção é o que menos importa. De maneira muito inteligente, como tudo que é roteirizado em Atlanta, essa é a história de muitos que alcançam o ápice de suas carreiras: desde antes ou durante o processo de reconhecimento em ampla esfera, manter-se são é um desafio constante.
A única história real de sucesso que conheço envolvendo talento, genialidade e loucura está no filme Uma mente brilhante, em que um matemático, apesar de esquizofrênico, ganha um prêmio Nobel.
The billion dollar code é cheia de camadas, para além da história sobre passar a perna no mundo corporativo e como tentar dar a volta por cima em busca de justiça. É quase um manual de como evitar ser manipulado e de como resguardar suas ideias e interesses. Confiança é para poucos.