Zona de interesse
Na série sobre Cristóbal Balenciaga, o estilista, muitos anos depois, ao refletir sobre a Segunda Guerra, tenta fazer com que uma jovem jornalista entenda a gravidade do que foi feito com as vestimentas de guerra depois do anúncio do fim: as roupas dos soldados alemães e as bandeiras com suásticas foram imediatamente impedidas de serem utilizadas, mas transformadas em agasalhos infantis. Ele pergunta à jornalista: “você entende o que quero dizer, com esses tecidos por aí, vestindo nossas crianças?” A jornalista não entende, até mesmo argumenta que considera uma boa ideia a reciclagem e ressignificação. E Balenciaga responde, decepcionado: “só quem viveu a guerra é capaz de entendê-la”.
Lost in translation, de Sofia Coppola, não é a história de um homem em crise de meia-idade e uma mulher na crise dos vinte anos que se conhecem em solo estrangeiro. É a história do casamento falido dessa mulher. Gosto de filmes com histórias sobrepostas: você pensa que é uma coisa, mas é outra. A delícia do cinema também está na descoberta.
Lembra, por exemplo, da primeira vez que você assistiu Tubarão, do Spielberg? Você sabia que o tubarão se aproximava por causa da música de John Williams. A tensão criada pela música-tema intensificava a sensação de perigo, um som muito característico, marcante, que atravessou gerações.
Agora, imagine um filme em que o som é protagonista. Assim é Zona de interesse. Uma colcha de retalhos, uma crônica de família, que me lembra várias outras obras do audiovisual que não chegam nem perto dela. Mas Zona de interesse também é sobre a arte de contar histórias, ainda que seja uma das piores.
Zona de interesse começa sem imagens. Quase um minuto ou pouco mais que isso de “apreciação do som ambiente”, até entrarmos em contato com a rotina dos personagens, uma família em situação idílica: filhos crescendo com pai e mãe presentes, uma casa enorme, cheia de empregados e área verde. Só tem uma coisa: aquela é a mansão de Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, sua moradia é vizinha ao campo de concentração em plena Segunda Guerra. Dia e noite toda a família vê a fumaça do expediente ao lado sendo cumprido. E isso não os afeta. A vida continua, plena e tranquila, pois eles estão no lado mais verde da grama.
Aqui nós temos contato com a intimidade do casal Rudolf (Christian Friedel) e Hedwig (Sandra Hüller, que mulher). Enquanto Rudolf conspira com os seus em estratégias sobre como queimar ainda mais aquelas pessoas, Hedwig cuida da casa e, às vezes, ignorando quase tudo que há lá fora, consegue ser mais cruel que o marido. Seja ameaçando uma de suas funcionárias de ter destino semelhante ao “inimigo”, seja experimentando roupas elegantes de judias condenadas ao campo de concentração. Crueldade não rima com banalidade à toa. Está tudo bem para Hedwig, inclusive conforme ela mostra para a mãe, quando esta lhe visita. Sobra tempo para dizer, entre falar sobre a horta que plantou e dos projetos futuros da casa, que “os judeus estão do outro lado do muro”, quando a mãe questiona e lembra de seus patrões, judeus, que provavelmente estão ali ao lado. É tempo de celebrar a ascensão da filha, mesmo que indiretamente ela tenha as mãos manchadas de sangue.
Quase toda a primeira parte do filme é dedicada a Hedwig e sua rotina, com paralelos interessantes: uma filha com pesadelos, mas que sonha com o mundo real, até mesmo em ajudar aqueles que o pai machuca, sem ter a exata compreensão do que acontece; um dos filhos menores que brinca em seu quarto ouvindo um homem ser capturado e m0rt0; posteriormente sendo preso na estufa por seu irmão mais velho, clara demonstração de força e de normalidade quanto a ideia de encarcerar alguém; as empregadas da casa, silenciosas, silenciadas e cheias de pavor. O jardineiro que passa a maior parte do tempo na área externa e escuta tudo — ele não tem uma fala sequer no filme, mas nos faz pensar sobre o que sente, como se sente ouvindo aqueles gritos, sentindo aquele cheiro. Como consegue puxar o carro de mão sem se deixar afetar? Porque no cinema não podemos sentir o cheiro dos corpos queimando e nem o gosto das cinzas nos lábios; temos que nos contentar com o zumbido, o barulho, os pedidos de socorro e, até mesmo, com o silêncio ensurdecedor. E meus parabéns a Mica Levi, que bancou essa trilha sonora de músicas aterrorizantes, provocando inquietude.
Quando Rudolf recebe ordens de trabalhar em outro campo, temos uma segunda parte para Zona de interesse, com uma operação que leva seu sobrenome e cuja ideia é aniquilar quase 450 mil judeus húngaros em apenas dois meses. Quando tudo está acertado e a História cumpre seu papel, Rudolf olha para a câmera e o filme salta para o presente com a rotina do que sobrou de Auschwitz: funcionárias, não da casa do comandante, mas do museu do campo de concentração, limpam vidros da vitrine expondo calçados e roupas dos judeus exterminados; faxinam do chão ao teto para o início de mais um expediente.
Zona de interesse, adaptação de Jonathan Glazer para o livro homônimo de Martin Amis (que, antes de falecer, também fez o roteiro desse filme), não é fácil. Incomoda e é para isso mesmo que ele serve. É um filme de guerra com outro ponto de vista, sem o sofrimento que Hollywood tem tesão em mostrar com sadismo — foge dessa ideia. Me lembrou muito uma temporada da série O homem do castelo alto, em que a protagonista pede asilo político do outro lado da fronteira e vai viver com os nazistas. Mas aqui, em Zona de interesse, também é a realidade. Junto com Der untergang, nunca mais pretendo ver esse filme, pois, sendo uma das melhores experiências imersivas que o cinema pode proporcionar, não tenho a menor intenção de passar por isso de novo: ouvir sem conseguir ajudar.