A favorita
Recentemente terminei um “relacionamento sem compromisso” que, até pouco tempo atrás, funcionava em um molde agradável: havia honestidade e cumplicidade, para além da beleza em apreciarmos a companhia um do outro. E essas características eram tão evidentes, que fui ingênua e cometi um erro — o erro de me assumir bissexual. É geralmente aí que o homem hétero faz a festa e não descansa enquanto não encontrar a “terceira pessoa”. Ele achou e, de repente, minha companhia não era mais tolerável sem a presença dela. Eu não estava mais confortável com aquilo, então me retirei.
Essa situação coincidiu com o momento em que assisti A favorita, de Yorgos Lanthimos, atualmente disponível no catálogo da Netflix, em ocasião do lançamento de Pobres criaturas, que chega aos cinemas brasileiros nesse fim de semana. E sim, pretendo ver e teremos resenha (não há filme pelo qual eu esteja mais ansiosa depois de Barbie). Lanthimos, hoje em dia, é um desses diretores meio “Caetano Veloso, modo de fazer” — chamo assim artistas dos quais você nunca sabe o que esperar, somente o improvável. Lanthimos melhora e surpreende a cada filme e o mirabolante é o charme de suas obras.
Eu nada sabia do enredo de A favorita, mas aqui, separando por capítulos cujos títulos são frases partidas de diálogos do filme, ele supõe um triângulo amoroso entre a rainha Anne e duas de suas subalternas. O enredo é livremente baseado numa história real, mas livremente mesmo.
No século XVII, britânicos estão em guerra contra franceses e a conselheira da rainha Anne (Olivia Colman), a duquesa Sarah (Rachel Weisz), toma a frente das batalhas sempre que a rainha adoece. É como se ela estivesse acima, inclusive, do primeiro-ministro, dada sua intimidade com a soberana, fora o fato de que ambas cresceram juntas e sabem tudo uma sobre a outra.
Nesse contexto, surge Abigail (Emma Stone), prima de Sarah, que vai até o palácio pedir uma oportunidade de trabalho, tendo em vista que sua família sofreu dificuldades nos últimos anos. Abigail é uma moça instruída, assim como Sarah. E já foi uma dama da corte. Sarah, sem muito confiar na recém-chegada, lhe acolhe na cozinha e limpeza do lugar, como uma espécie de “faz-tudo”. Mas Abigail consegue se aproximar da rainha, ganhar a confiança de Sarah e subir de cargo na corte, transformando-se em criada pessoal da prima e, posteriormente, em dama de honra da rainha.
O filme é um jogo de caça entre gato e rato e você não sabe exatamente quem é quem. Além de Anne como rainha, a comédia e o absurdo também reinam, uma característica muito forte no comportamental da sociedade nos filmes de Lanthimos, onde tudo parece mesmo um teste social. Abigail já não é tão ingênua quanto faz parecer e é ardilosa como uma boa vilã: aproximando-se da prima e conhecendo seus segredos, ouvindo atrás de portas e presenciando momentos em que não deveria estar ali (mas teve sorte), cada gesto e atitude de Sarah é uma arma nas mãos de Abigail. Ela está pronta a disparar sempre que possível. E o filme fica com esse ar de muito do que a série The crown deveria ter sido, também pela presença de Olivia como uma rainha Anne louca, com surtos de vaidade e autoconsciência de seu cargo e destino do país vez ou outra. Você passa o filme inteiro vendo-a ser manipulada e sente pena (Olivia Colman venceu o Oscar de melhor atriz por esse papel). Primeiro, por Sarah, que não hesita em chantageá-la. Depois, por Abigail, que inspira confiança para conseguir tudo que deseja. E quando consegue, quando Sarah está expulsa até mesmo do país, Lanthimos nos brinda com um final melancólico: manipula mais e melhor quem tem dinheiro e poder. Abigail pensa que venceu a prima, mas a vitória é se ajoelhar e servir a rainha. Sem a rainha, ela não é nada: não poderá ter posição, posses, voz — tudo que ela convenceu Anne a tirar de Sarah. E é com essa imagem que o filme termina: com Abigail aos pés de Anne e os rostos de ambas sobrepostos com as imagens dos coelhos que a rainha cria — dezessete, no total, cada um representando um aborto que fez. Abigail torna-se, então, um dos animaizinhos domesticados da soberana.
Outro belo destaque é a atuação de Nicholas Hoult como o maquiadíssimo e futuro primeiro-ministro Harley. Seu personagem nos faz lembrar de que “tudo é política”, afinal. E talvez seja ele quem melhor se movimenta nesse jogo de xadrez. E só um peão, mas sabe desfilar. Hoult brilha aqui tanto quanto na série The great: também de época, na qual ele interpretou o rei da Rússia que casou com Catarina, A Grande. Uma excelente série de comédia, infelizmente cancelada em seu auge.
A favorita, também é uma comédia, só que de costumes, sobre as armadilhas em ratoeiras que plantamos para nós mesmos. Você luta para conquistar uma situação aparentemente confortável, mas ignora a engrenagem de quem está acima. Em minha vida pessoal, posso afirmar que o desconforto é justamente a zona que consigo tatear no escuro com alguma segurança, mas hoje quero a claridade de ser livre nas pequenas coisas, inclusive no campo sentimental. Não me submeter ao mínimo que me oferecem é o mínimo que posso fazer por mim. E é um pouco dessa “moral da história” que A favorita permite ao público refletir.