Maestro
Depois de O lado bom da vida, entrei numa espiral de ver filmes com Bradley Cooper, um ator que nunca me chamou atenção, que achei ruim nesse filme citado, porém brilhante na participação especial que fez em Licorice Pizza. Um dia escrevo sobre meu problema com atores loiros de olhos azuis, o padrão de Hollywood que me fez desconfiar por anos de Brad Pitt, por exemplo. Antes de Maestro, assisti a um filme em que Cooper fez um chef de cozinha nervosinho e viciado em drogas. Tão ruim quanto O lado bom da vida, dispensa comentários. Mas por essas duas escolhas na atuação, somando a que ele fez em Nasce uma estrela ao lado de Lady Gaga, é possível estabelecer que Bradley Cooper gosta de personagens com probleminhas na cabeça. E eu gosto de quem tem probleminhas na cabeça, porque sou assim.
Também gosto muito de filmes que enganam. Com esse histórico do Cooper, esperava que Maestro, que se propõe a ser a biografia de Leonard Bernstein, o primeiro compositor norte-americano que recebeu reconhecimento mundial, também fosse a biografia de um gênio, mas com detalhes sórdidos: atirando cadeiras em alunos, sofrendo ataques histéricos, destratando muita gente, um ícone incompreendido. Mas não. Esse homem era um fofo e, tirando o fato de ter sido bissexual, ou um homem gay que casou com uma mulher, a vida de Leonard Bernstein foi bem ok para uma vida que deu muito certo: foi compositor, regeu orquestras, trabalhou muito bem na sua área a ponto de tornar-se expoente, ganhou prêmios por isso; casou, teve três filhos e morreu.
Produzido por Spielberg e Scorsese, dirigido e protagonizado por Bradley Cooper, Maestro, o “Oscarbait” aposta da Netflix para a temporada de premiações, não é um filme sobre Leonard Bernstein. Ou, antes de tudo, é um filme sobre a sorte que esse homem teve em ter ao seu lado a mais fascinante das mulheres: Felicia Montealegre.
E, por mais que trailer e sinopse digam o contrário, o filme já começa com a afirmação de que é sobre ela. Um Leonard ao piano, gravando para um programa de televisão, admite sentir falta de Felicia todos os dias.
Felicia Montealegre foi uma atriz chilena que se destacou na televisão norte-americana. Ela e Leonard se conheceram em 1946 e casaram-se no início da década seguinte. Felicia sempre soube de sua condição sexual, deixava-o livre para ser como quisesse, mas os casos extraconjugais de Leonard prejudicavam a relação dos dois cada vez que alcançavam o público, e Felicia abriu mão de muitos trabalhos para cuidar do marido e dos filhos, apoiando a carreira dele em detrimento da sua própria. Em 1976, quando já estava insuportável para ambos, Leonard deixou Felicia para viver com um de seus amantes, mas voltou para ela pouco mais de um ano após a separação, pois Felicia descobriu um câncer no pulmão. Leonard esteve com ela até seu último dia. Então, esse filme é uma crônica conjugal.
Muito interessante é a forma que Bradley Cooper escolheu filmar Maestro. Os primeiros anos de ascensão profissional de Leonard são marcados pelo preto-e-branco e também por não esconder seus amantes masculinos. Na primeira cena após o início do filme, ao descortinar a janela por receber uma boa notícia, Leonard revela um homem em sua cama. O filme ganha cores quando sua vida com Felicia está consolidada, ponto negativo, pois não parece existir algo especial para essa transição específica; inclusive, quando acontece, Felicia está de costas para a câmera. Não é emocionante, como a transição do preto-e-branco para as cores presente em Asas do desejo, por exemplo, quando o anjo é presenteado com sua própria humanidade. Não entendi o que Bradley Cooper quis transmitir dessa forma. Talvez a aparente mudança de personalidade de Felicia. É assim em todo início de relacionamento: somos atraentes porque boníssimos, fazemos de tudo para agradar. Felicia é como um anjo quando surge na vida de Leonard, ela sempre tem a palavra certa e o tom de voz perfeito para convencê-lo e apoiá-lo em sua arte. Já na segunda fase do filme, ela ainda é apaixonante, porém sarcástica, cansada, alguém que tolera por conveniência.
Em Maestro, Felicia Montealegre é interpretada por Carey Mulligan. Gosto muito, muito mesmo, de ver o quanto essa atriz cresceu, ela é uma das melhores de sua geração. Vem sendo ofuscada nas premiações recentes por suas concorrentes, mas uma estatueta de melhor atriz por Maestro com certeza Mulligan merece. Para quem não sabe, Carey Mulligan, depois de assistir a uma palestra de Julian Fellowes em sua escola, foi desencorajada por ele a ser atriz. Fellowes disse que ela deveria procurar casar com um bom advogado. Mas ela insistiu em sua vocação enviando-lhe uma carta que sua esposa leu. A esposa de Fellowes convidou-a para jantar e, nessa ocasião, Mulligan conheceu uma assistente de casting que lhe colocou numa audição para a então nova adaptação de Orgulho & preconceito, dirigida por Joe Wright e protagonizada por Keira Knightley.
Mas a história que Joe Wright conta é outra: Mulligan era uma garçonete britânica que estudava teatro quando, um dia, soube da adaptação e escreveu um e-mail para ele, dizendo o quanto amava o livro e adoraria participar do filme, mesmo como figurante, pois ela só queria ter a experiência de fazer parte daquele universo. Independente de qual história é a verdadeira, Mulligan fez um teste e se saiu tão bem que se tornou Kitty, a mais nova das irmãs Bennet, tendo um excelente início de carreira no cinema, visto que a versão de 2005 para Orgulho & preconceito marcou toda a minha geração, é meu filme favorito. Os anos se passaram, ela ainda fez Shame, Drive, repetiu sua parceria com Keira Knightley em Never let me go (outra adaptação literária, dessa vez do livro homônimo de Kazuo Ishiguro); protagonizou um dos meus filmes favoritos de sua carreira, An education; fez Daisy em The great Gatsby, atuou ao lado de Ralph Fiennes num filme que só foi interessante pela presença dos dois; depois contou as histórias de mulheres que fizeram acontecer o movimento “me too” e, antes de Maestro, assisti muito feliz a outra protagonista que ela fez, em Promising young woman. Não há filme mediano no currículo de Carey Mulligan, porque ela faz qualquer filme acontecer.
Adoraria ter visto Maestro no cinema, pois seria um prazer imenso olhar para a tão expressiva Carey Mulligan sendo Felicia Montealegre em uma tela grande. Sobretudo para os momentos da personagem enfrentando o câncer, recebendo amigos em casa, relembrando tempos gloriosos, enquanto sua vida escorre pelos dedos, já muito debilitada pelo avanço da doença. Desde o momento em que surge na tela até sua despedida, é impressionante o quão rica a trajetória de Leonard Bernstein foi, por causa de sua esposa. Tanto que o filme literalmente termina quando ela também vai embora. Não tem o que contar depois, só o que lamentar: Leonard lamenta o desperdício que foi cada segundo distante dela. Felicia dedicou muito tempo de sua vida a Leonard. Leonard foi grato por tê-la conhecido.
Com o aval dos três filhos do casal, Maestro é uma carta de amor belíssima, não só de Leonard para Felicia, mas também do cinema para seu público — e penso que estávamos precisando de um romance assim para o cinema hollywoodiano e oscarizado de hoje. Um romance possível, com o qual possamos sonhar e desejar. Com seus percalços, mas com muita cumplicidade, nenhum abandono. Um romance de cinema, enfim. Essa é a glória que Maestro alcança.